OPINIÃO: O dia depois de amanhã

Como num filme-catástrofe a falta de seriedade em relação ao transporte público coletivo pode nos conduzir da pandemia ao pandemônio

RAFAEL TELES
Enquanto o governo decide que Igrejas são serviços essenciais, oferece socorro às empresas aéreas e discute se deve ou não deve seguir todas as demais nações do mundo em relação ao enfrentamento da Covid-19, os sistemas de transporte público brasileiros vão se desintegrando diante de um ensurdecedor silêncio.

Sim, é verdade que a crise está há muito instalada no setor. Também não é fato novo a confusão que se faz entre Política de Transporte e política no transporte, o que também explica, em grande parte, a visão caricata que se construiu na opinião pública – melhor seria dizer no imaginário popular – de que todo o debate sempre se estabelece em torno dos interesses dos empresários do setor, os “tubarões da catraca”, os “reis dos ônibus” – ou seja lá qual for o título extravagante que ajude a vender jornais (ou, mais modernamente, obter cliques).

Em verdade, construímos no Brasil sistemas de transporte público coletivo perversos, num modelo que só funciona se um pobre subsidiar outro pobre. Sim, são só os pobres (ou os empregadores dos pobres) que pagam pela existência do serviço – e também pagam pelos idosos, pelos estudantes, pelos carteiros e por quem mais for alçado à condição de merecedor de uma isenção. Esse modelo, todos sabemos, limita a fome ao dinheiro que estiver disponível a pagar pelo prato – e é óbvio que, em sendo um sistema financiado apenas pelos mais pobres, o tamanho do prato fica sempre aquém da fome.

Presos que estamos a soluções como o vale-transporte, que é positiva mas não alcança  grandes indústrias, bancos ou companhias aéreas – cito esses três segmentos como exemplos onde a despeito de grande capacidade contributiva e incentivo governamental usa-se maciçamente o transporte privado – só conseguimos financiar a operação do transporte público coletivo quando ele usado acima da sua capacidade ótima (afinal, quem paga a tarifa o faz por si e por mais alguém que usa o serviço sem pagar). E sobrevivemos assim até o Covid-19.

A pandemia paralisou o convívio social, as atividades de educação, parte da produção. E se para combatê-la é preciso reduzir a circulação de pessoas, nos restaria paralisar o transporte público coletivo, certo? Não.  De repente, as autoridades brasileiras descobriram que a operação dos sistemas de transporte é essencial ao funcionamento dos hospitais, dos supermercados, das padarias, dos açougues e até das lojas de material de construção – todos, agora, também equiparados em essencialidade ao próprio transporte público. E mais: decidiram que está proibida a lotação dos veículos, agora todos devem viajar sentados (penso que nem o mais otimista dos manifestantes de 2013 imaginaria essa conquista).

E é aí que mora o nosso novo problema. A crise dentro da crise. Ao mesmo tempo que as pessoas reduziram o uso do serviço, foi preciso manter a frota em operação como se a vida estivesse normal. E isso não está sendo um problema em Paris, que vive o mesmo quadro de pandemia, mas onde 60% do custo do sistema de transporte é financiado pelo Estado ou pelas grandes empresas. Nem em Londres, onde uma taxa de congestionamento aplicada aos transportes privados cobre os custos de parte do serviço. Nem mesmo em São Paulo, que destina quase 3 bilhôes de reais por ano para manter o sistema de transporte público com uma qualidade maior que a que seria possível por uma tarifa de R$ 4,25. É em Macapá, João Pessoa, Pelotas, Salvador ou Tubarão que a nova realidade está cobrando o preço mais alto.

Sem outra fonte de custeio que não seja a própria tarifa cobrada dos usuários, que já não usam mais o serviço, o Brasil opera aos olhos do mundo um milagre econômico: espera que empresas privadas comprem combustíveis, peças, pneus e paguem salários com um dinheiro que, simplesmente, não existe. E antes que alguém fale nos “reis dos ônibus” a gente precisa lembrar que o lucro das empresas – pelo menos no caso das urbanas, com contratos licitados, já estava limitado. Diferente das empresas aéreas que aumentam as passagens conforme a demanda, as empresas de ônibus não têm poder para definir nem preço e nem oferta. Nem custo, nem qualidade.

Ao contrário do Boi, da Bala e da Bíblia, representados politicamente no Congresso, o transporte coletivo só conta com a bancada dos ônibus, aquela em que os passageiros tomam assento – enquanto ainda há vagas (e ônibus, claro). Os 107 mil ônibus urbanos brasileiros empregam mais de meio milhão de pessoas diretamente. E, para essas pessoas, bem como para as que dependem do serviço de transporte coletivo (pagando por ele ou não), aparentemente, o Governo Federal e os Governos Locais deixam, nesses tempos de lacração em redes sociais, no máximo, uma hashtag: #elesquelutem.

Rafael Teles, é bacharel em Administração pela Universidade Federal da Bahia, especializado em Planejamento de Transporte e Gestão da Mobilidade Urbana e Diretor de Produto da Transdata